A guerra às drogas é uma guerra contra jovens negros


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27/09/2023 às 09:15
Diplomatique

DESCRIMINALIZAÇÃO

Na semana em que o presidente do Senado mostrou a disposição de enviar uma PEC para incluir na Constituição a criminalização de qualquer volume de entorpecente, reagindo ao julgamento ainda inacabado do STF, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apresentou os resultados finais de uma pesquisa em âmbito nacional que buscou identificar quem é o processado pelos crimes de droga. E ele é o jovem negro de baixa escolaridade. É contra ele que os mecanismos da guerra às drogas se dirigem e são cada vez mais persistentes. 

Não se pode dizer que os números sejam propriamente uma surpresa. Uma série de pesquisas já havia apontado dados similares em amostras menores ou de âmbito regional. Contudo, a consolidação do quadro em um espectro nacional é um registro importante. Em relação aos processos das justiças estaduais, por exemplo, a expressiva maioria dos que correm no país, o resumo é nítido sobre os réus: 86% de homens, 72% com 30 ou menos anos, 66% de negros (entre pretos e pardos) e 68% de pessoas que não chegaram a completar o ensino médio. Quase 80% deles, primários.

Militares em operação na favela da Rocinha para combater confrontos entre facções de traficantes de drogas (Fernando Frazão/Agência Brasil)

Militares em operação na favela da Rocinha para combater confrontos entre facções de traficantes de drogas (Fernando Frazão/Agência Brasil)

Há razões consistentes para essa enorme seletividade – que já havia apontado quando apresentei pesquisa de amostra mais reduzida no livro Sentenciando tráfico, em 2019: quase 90% dos processos criminais começam com prisões em flagrante, a maior parte deles na rua, por policiais militares em atividade de patrulhamento. A pesquisa do Ipea confirmou que pouco mais de 10%, nos casos relativos à Justiça Estadual, provém de investigações mais apuradas. 

O patrulhamento explode a seletividade porque depende de quem é abordado pelos policiais – e diversas outras pesquisas apontam a opção preferencial das forças de segurança pelos jovens negros. A respeito, já escreveu Jéssica da Mata em seu A política do enquadro: “Trata-se de um padrão consideravelmente antigo e que ainda hoje se mantém, de modo que, ao menos entre os estudiosos da polícia, não existe mais dúvida de que o racismo é reproduzido e reforçado através da maior vigilância policial a que é submetida a população negra”. 

A pesquisa apresentada em seminário da Secretaria Nacional de Política sobre Drogas (Senad) em 22 de setembro traz uma conclusão aterradora: os processos funcionam em uma lógica de cilindro, ou seja, há pouquíssimos filtros que separam a prisão em flagrante da condenação. Volumes irrisórios de arquivamento de inquéritos pelo Ministério Público ou de rejeição de denúncia pelos juízes. Ao final, os mais de 70% de condenações em tráfico de drogas levam os pesquisadores a concluir que é mesmo “a Polícia Militar, em seu policiamento ostensivo, que detém o protagonismo na política criminal de drogas”. 

A baixa quantidade de filtragem decorre, em grande medida, do fato de que a prova testemunhal é a peça de resistência dos processos de tráfico, e é a palavra da polícia que domina as instruções processuais, seja pelo volume (está presente em praticamente todas as audiências) seja pela aceitação dela como uma verdade quase absoluta. 

A centralidade da palavra da polícia indica que a decisão do STF, se de fato convergir pela descriminalização do porte e a fixação de um limite mínimo de droga para a presunção do tráfico, pode não ter o efeito desejado: afinal, o próprio ministro Alexandre de Moraes já indicou que, além do volume, outras circunstâncias vão ser levadas em conta, como denúncias anônimas, local de apreensão, apetrechos etc. – todos elementos que chegam ao juízo exclusivamente pelos relatos da polícia. 

No seminário de apresentação dos dados, o pesquisador Marcelo da Silveira Campos chamou atenção para o fato de que, a despeito de todas as mudanças que têm sido tentadas nos processos de drogas, nada foi capaz de reduzir a representação dos condenados por esses crimes no interior do sistema penitenciário, que permanece, há anos, próxima a 30%, praticamente a maior incidência de prisões pelo país.  

Há bons motivos para isso. 

A mediana das apreensões de droga chama atenção pela escassez. Tratando-se de maconha, não passa de 85g a quantidade em média portada por cada acusado preso –menos do que os 100g sugeridos pelo ministro Barroso como sarrafo para a consideração do tráfico de drogas. A tônica de repressão, portanto, continua se sustentando no microtráfico. 

A lei 11.343, de 2006, pretendeu fazer uma distinção entre o grande e o pequeno traficante, para evitar o hiperencarceramento que já produzia seus efeitos perversos –inclusive, paradoxalmente, aumentando e não diminuindo a criminalidade, uma vez que os jovens presos acabavam simplesmente servindo como soldados para as organizações criminosas. 

Entretanto, a distinção não funcionou, mesmo que o STF tenha aprofundado em suas decisões o gap entre o traficante “hediondo” e o “privilegiado”. Não funcionou porque, de um lado, a polícia, com parca investigação, continuou focando no pequeno vendedor que vê na rua; e de outro, os juízes, imbuídos da certeza moral de que o tráfico é quase um crime contra a humanidade, resistiram o quanto puderam a aplicar as atenuantes previstas em lei. 

No entanto, ainda há um outro motivo. 

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem consolidando uma jurisprudência que limita o apego desmedido à prova policial. Primeiro, exigindo que a polícia documente e justifique, de forma fundamentada, a violação aos domicílios – quase todos, evidentemente, vulneráveis. De outro lado, que respeite critérios para abordagens, não se limitando ao próprio “tirocínio” policial, que no mais das vezes esconde a chaga do racismo institucionalizado.  

Todavia, essas decisões não só estão sendo pouco replicadas nos tribunais dos estados, como, mais recentemente, estão sendo vítimas de uma desconstrução no andar de cima, sobretudo por decisões monocráticas do próprio ministro Alexandre de Moraes, revigorando o poder da polícia e, mais ainda, das guardas municipais. 

As tentativas de estabelecer filtros são, assim, constantemente bombardeadas. Com o predomínio da lógica do cilindro, em que prisões em flagrante vão se transformando quase automaticamente em condenações criminais, o papel dos juízes se resume a um viés confirmatório. 

O quadro continua periclitante, mas como a repressão se destina aos suspeitos de sempre, permanece não despertando a atenção da política ou da sociedade. O repúdio ao hiperencarceramento não parece ser um critério relevante na escolha de ministros para o Judiciário. 

O resultado não será apenas a manutenção de um sistema que continua empilhando jovens negros nos cárceres; mas a possibilidade real de que essa guerra produza cada vez mais vítimas.  

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