Pesquisadores analisaram taxas de inscrição, participação e desempenho de alunos de escolas públicas e privadas entre 2013 e 2021
Redação
Enem
Depois de sofrer uma vertiginosa queda de inscritos em função da pandemia de covid-19, os números de inscritos no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) voltou a registrar crescimento. De acordo com o Painel Enem – plataforma do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), a edição de 2024 teve mais de 4,3 milhões de inscritos, cerca de 9,9% a mais que o ano anterior.
Esse número, no entanto, ainda é inferior ao que o Enem apresentava no cenário pré-pandêmico. Em queda desde 2016, a quantidade de inscritos confirmados no exame em 2019 chegou a quase 5,1 milhões.
O Enem é a principal forma de acesso para estudantes do ensino médio chegarem ao ensino superior. O exame permite aos alunos concorrerem a vagas gratuitas em instituições federais por meio do Sisu (Sistema de Seleção Unificada) ou participar de programas subsidiários, como o Prouni (Programa Universidade Para Todos) e o Fies (Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior).
Mesmo com essa importância, as taxas de inscrição, participação e desempenho médio do Enem reforçam as desigualdades educacionais do Brasil. É isso o que apresentam o primeiro e o segundo relatório da pesquisa “Oportunidades educacionais de estudantes concluintes do Ensino Médio: um estudo do Enem entre 2013 e 2021”, apoiada pelo Instituto Unibanco.
Pesquisadores do Lapope (Laboratório de Pesquisa em Oportunidades Educacionais) e do Nied (Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Desigualdade), ambos da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), cruzaram dados do Censo Escolar e do Enem entre 2013 e 2021 e identificaram o aumento de desigualdades educacionais entre concluintes do ensino médio.
Além do encolhimento no número de inscritos na série histórica, os relatórios também indicaram um processo de elitização entre os participantes do Enem. Esse cenário se intensificou nas edições em meio a pandemia de covid-19.
Neste texto, o Nexo Políticas Públicas apresenta como os índices de inscrição, participação e desempenho retratam as desigualdades educacionais do ensino médio brasileiro e as recomendações dos pesquisadores sobre como melhorar esse cenário.
Inscrição e participação
O primeiro relatório analisou o interesse dos concluintes do ensino médio – ou seja, que estão no terceiro ou quarto ano – em acessar o ensino superior. Apesar de não garantir a vaga, se inscrever e fazer a prova são indicativos da vontade dos estudantes.
Com isso, os pesquisadores da UFRJ criaram os parâmetros TI (taxa de inscrição) e TP (taxa de participação) em relação a diferentes perfis dos estudantes. Entre 2013 e 2016, os dois índices registraram um aumento entre os concluintes do ensino médio, que começou a cair a partir de 2017. Com a pandemia, os dados registraram uma queda ainda maior.
Segundo o estudo, a rede estadual pública é a que comporta a maior quantidade de matrículas no ensino médio brasileiro, com 83,6% dos estudantes matriculados em 2019. No ano, a rede privada contava com 13,5% dos matriculados.
As taxas de inscrição e participação de alunos da rede privada, no entanto, foram bem maiores que as da rede pública ao longo da série histórica. O ano com maiores taxas foi em 2016, com TIs de 94% e 68% e TPs de 90% e 55%, respectivamente. Por outro lado, os menores índices foram em 2021: TIs de 77% e 36% e TPs de 72% e 26%.
“O que a gente vê nas escolas privadas no Brasil são programas de acompanhamento de estudo individualizado, de recomposição e recuperação de aprendizagem, e que estão muito focados na participação no Enem. Aumentar a sensação de preparo é eficaz para os estudantes da rede privada. Essas políticas têm sido implementadas nas redes estaduais, mas é a primeira geração, ainda carecem de aperfeiçoamento”, afirmou ao Nexo Políticas Públicas Caio Callegari, coordenador de Inovação no Instituto Unibanco.
O histórico familiar traz impactos nas taxas de inscrição e participação, segundo Callegari “Em geral, os estudantes da rede privada são de famílias de melhor nível socioeconômico e que já tiveram a experiência de ingressar no ensino superior. Isso transmite altas expectativas aos alunos, acontece um acompanhamento fino das famílias. Isso ainda é uma novidade na rede pública, apesar de estar alcançando cada vez mais. Os pais da maioria desses jovens não tiveram a oportunidade de ingressar no ensino superior”, afirmou.
Por ter um maior número de matriculados, a proporção de inscritos provenientes da rede estadual pública é mais que o triplo do que as de redes privadas entre 2013 e 2021. A taxa de participação tem índices semelhantes, mas com maior parcela para estudantes de escolas privadas.
As taxas de inscrição e participação de cor/raça demonstraram um predomínio da população PPI (pretos, pardos e indígenas), com porcentagem acima de brancos e amarelos. Esses índices chegaram próximo dos 50% com as complicações geradas pela pandemia.
Em relação aos níveis socioeconômicos, o quintil inferior (a parcela de 20% de estudantes mais pobres) e o quintil superior (20% dos mais ricos) chegaram a ter taxas semelhantes entre 2016 e 2019. Esses índices se distanciaram a partir da Covid-19, com o quintil inferior tendo 14% de participação em 2021, contra 26% do superior.
A partir de dados de 2018 do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos), o estudo identificou que 48,2% dos jovens entre 15 e 16 anos pertencentes a parcela de 20% mais pobres não pretendiam cursar o ensino superior. A média brasileira era de 33,1%.
A falta de aspiração ocupacional envolve uma cultura do trabalho em detrimento do estudo, afirmou Callegari. “A recessão econômica que o Brasil viveu e a deterioração da renda de famílias mais vulneráveis gerou um processo de construção para que os jovens pudessem apoiar na renda familiar. Agora, gradualmente, nós vamos retomando a cultura da importância das oportunidades educacionais no ensino superior”, disse o coordenador de Inovação do Instituto Unibanco.
O estudo também apresentou as TIs e TPs de estudantes com algum tipo de deficiência concluintes do ensino médio no Enem. A inscrição chegou a 56% em 2014, contra 28% em 2019 – o Inep (Instituto Nacional de Estatística e Pesquisa) não apresentou dados sobre essa população a partir de 2020. A taxa de participação é semelhante: 47% em 2014, contra 24% em 2019.
Desempenho
O segundo relatório dos pesquisadores da UFRJ se baseou nas notas gerais médias dos estudantes concluintes do ensino médio entre 2013 e 2021 no Enem. A intenção foi mapear a associação entre as notas no exame e cinco características do perfil estudantil: rede escolar, cor/raça, nível socioeconômico do estudante, sexo e região.
Os pesquisadores ressaltam que o estudo não permite identificar a influência das características no Enem. Segundo Caio Callegari, seria preciso fazer um estudo longitudinal para fazer essa relação.
“São pesquisas aprofundadas para analisar a trajetória educacional dos estudantes desde o início do ensino médio até o fim dele. Assim, a gente consegue analisar de forma mais adequada a eficácia das políticas educacionais nas diferentes redes de ensino e elaborar estratégias baseadas em evidência para diminuir as desigualdades”, afirmou o coordenador de Inovação do Instituto Unibanco.
As características analisadas reforçaram a importância de programas de ação afirmativa e cotas para acesso ao ensino superior. Entre estudantes de rede privada e rede pública, a disparidade da nota ultrapassou os 60 pontos. Na comparação racial, há um hiato de cerca de 10 pontos entre a média de estudantes brancos e amarelos e de PPI ao longo da série.
Combinando os dois dados, estudantes brancos e amarelos têm uma nota média geral maior tanto na rede pública quanto na privada. Em relação aos níveis socioeconômicos, a maior diferença de notas médias entre o quintil superior e o quintil inferior aconteceu em 2020, no primeiro ano da pandemia.
A adaptação ao ensino remoto, a redução do ritmo de aprendizado e o aumento do abandono escolar e evasão são fatores que podem ter influenciado no menor desempenho dos alunos mais pobres. “O que leva naturalmente a uma falta de confiança sobre o conteúdo aprendido e sobre as habilidades adquiridas”, disse Callegari.
72 é o tamanho da distância das notas médias entre o quintil superior e o quintil inferior dos estudantes concluintes do ensino médio no Enem de 2020
O estudo não identificou grandes diferenças entre o desempenho do sexo masculino e feminino ao longo da série. Já em relação às regiões, o Sudeste sempre se manteve em primeiro e o Norte em último das notas médias gerais. Houve melhoria das notas entre 2013 e 2021 nas cinco regiões brasileiras.
Competitividade de notas
A partir das notas não ponderadas do Enem, os pesquisadores fizeram uma análise sobre a seletividade acadêmica dos cursos disponibilizados no Sisu e de todos os estudantes que foram convocados para matrícula. Esse parâmetro permite identificar a qualidade e a atratividade de determinadas graduações e licenciaturas a partir do desempenho dos estudantes.
O índice permite identificar a partir de qual patamar de nota um concorrente tem maior ou menor liberdade de escolha entre os cursos disponíveis. Em seguida, eles ordenaram as notas de nada competitivas, em que um aluno não tem chance de entrar em nenhum curso, até muito competitivo, com uma grande gama de escolhas.
A série histórica dessa análise começa em 2017, quando o MEC (Ministério da Educação) liberou os dados das notas não ponderadas dos estudantes. Entre 2017 e 2021, a nota média geral para não ser competitivo caiu de 490 para 476. Por outro lado, a alta competitividade subiu: de 607 para 619.
Ao enquadrar o desempenho competitivo dos estudantes a partir das características, se observou a recorrência de desigualdades educacionais. “É importante que a gente identifique a maior presença de estudantes pretos, pardos e indígenas nos grupos de notas pouco competitivas e uma menor presença desses estudantes no grupo de notas altamente competitivas”, disse Caio Callegari, coordenador de inovações do Instituto Unibanco.
A presença de alunos da rede pública estadual e de PPIs na faixa nada competitiva é muito mais alta do que a da rede privada e de brancos e amarelos. A situação entre os quintis de níveis socioeconômicos é semelhante, com os mais pobres preponderantes entre os sem nota competitiva. Na faixa de alta competitividade, as proporções se invertem.
Na análise de regiões, destaca-se a presença do Nordeste com maior proporção de alunos com notas de maior competitividade, diferentemente do apresentando em relação à nota média, que tinha o Sudeste como região predominante.
Conclusões e recomendações
Além dos estudos longitudinais sobre a trajetória dos alunos concluintes de ensino médio, ambos os relatórios trouxeram recomendações a serem tomadas a partir dos dados analisados. Essas propostas são destinadas, principalmente, a gestores públicos de educação, como o governo federal e as secretarias estaduais.
Callegari afirmou que é crucial que os gestores exponham as oportunidades de ingresso no ensino superior. “Tanto em articulação com o currículo e, portanto, articulação como os professores, para que a mensagem de que é possível acessar o ensino superior seja trabalhada ao longo de todo o ciclo do ensino médio”, disse o coordenador de inovação do Instituto Unibanco.
Ele destacou o Pé de Meia, programa federal criado em janeiro que oferece bolsas-auxílio para estudantes de baixa renda do ensino médio. “Além de incentivar que os jovens continuem no ensino médio, frequentando a escola, efetivamente estudando, também vem com uma perspectiva de um estímulo à efetiva realização da prova, o que é muito importante”, afirmou Callegari.
Em relação ao primeiro relatório, focado nas inscrições e na participação, as recomendações envolvem:
Uma rotina de disseminação de informações sobre a importância do Enem para o acesso ao ensino superior;
O monitoramento das taxas de participação e inscrição dos estudantes por território;
Programas de análise do perfil estudantil, para identificar as desigualdades educacionais;
Monitorar a participação de estudantes do EJA (Educação de Jovens e Adultos);
Programas de orientação, motivação e auxílio para a inscrição no Enem;
Programas voltados para a ampliação da participação de grupos mais vulneráveis no Enem;
Turmas de reforço para estudantes mais vulneráveis.
As recomendações sobre os dados de participação são:
Monitorar as desigualdades sociais e raciais em relação ao desempenho no Enem nas redes pública e privada;
Programas de recomposição e recuperação das aprendizagens;
Programas locais de mentoria acadêmica entre estudantes de ensino médio;
Aprimoramento dos programas de ação afirmativa e cotas para estudantes de rede pública e por perfil racial;
Ação nacional de intercâmbio de políticas e práticas de redes estaduais de ensino para a recomposição e recuperação das aprendizagens.
“É importantíssimo trabalhar com o acompanhamento dos jovens, sobretudo da rede pública e os mais vulneráveis para constituir essa confiança e autoestima para que efetivamente participem na prova e tenham bons desempenhos”, disse Callegari.