Mentirosos despe pretensões cult do livro e abraça a novelinha teen
Redação
Novidade
Mentirosos tinha um problema. Por mais que tenha sido um fenômeno editorial, em grande parte alimentado por sua estrutura fundamentada em um grande plot twist e pela mistura de apelos mercadológicos certeiros (mistério de classe alta + romance adolescente), o livro de E. Lockhart tinha um calcanhar de Aquiles que estava mais para buraco gigantesco no meio do coração: Cadence Sinclair. Num mundo em que protagonistas femininas ainda são admoestadas por não serem “amáveis” o bastante, enquanto personagens masculinos têm espaço de sobra para trafegar no cinza moral, Cadence virava as expectativas pelo avesso. Ela tinha a aliança inquebrantável da voz narrativa de Lockhart, quando… bom, talvez simplesmente não merecesse ter.
De fato, havia ali uma corrente subterrânea de solidariedade pelos Sinclair que eventualmente envenenava Mentirosos a um ponto que o tornava confuso: o livro passa 200 e poucas páginas nos mostrando todos os motivos pelos quais esses ricaços são terríveis e tóxicos, consigo mesmos e com os outros, só para pedir que sintamos pena deles no final. Não rolou para muita gente, embora o poder de uma boa fofoca os tenha feito virar as páginas até o final de qualquer forma. E, assistindo à adaptação de Mentirosos para o Prime Video, fica abundantemente claro que não rolou também para Julie Plec (The Vampire Diaries) e Carina Adly Mackenzie (Roswell, New Mexico), as showrunners da série.
Criadas no celeiro da CW dos anos 2000 e 2010, local e período que representou o pináculo das novelinhas teen estadunidenses, Plec e Mackenzie fazem de tudo para transformar Mentirosos em um draminha mais simpático - e o caminho que encontram, é claro, passa por dispositivos narrativos consagrados do gênero que conhecem melhor. Daí que o romance de Cady (Emily Alyn Lind) e Gat (Shubham Maheshwari) ganha mais espaço na trama, os conflitos raciais de Harris (David Morse) com o rapaz de ascendência indiana são extrapolados para além das micro agressões, e as lutas das irmãs Sinclair (Caitlin Fitzgerald, Mamie Gummer e Candice King) com dependências químicas, infidelidades e agressões ganham os holofotes ao invés de permanecer difusas no fundo da luta de Cady para recuperar suas memórias.
Essa Mentirosos, enfim, está plantada firmemente no terreno do folhetim - e por aqui é muito mais fácil engolir a ideia de se importar profundamente com um bando de milionários e os joguinhos psicológicos que os despedaçam. Afinal, qualquer fã de Manoel Carlos ou Walcyr Carrasco tem décadas de prática nesse esporte. O que Mentirosos, a série, realmente faz é expor o quanto a pretensão estragou Mentirosos, o livro. Lockhart, talvez ansiosa por mostrar que suas habilidade classicamente lapidadas iam além de historinhas românticas pré-adolescentes (ela ficou famosa com o quarteto Ruby Oliver, encabeçado pelo best-seller The Boyfriend List), sentiu a necessidade de embrulhar só mais uma história teen melodramática em descrições pseudo poéticas e pseudo críticas sociais que desmoronavam diante da necessidade rasa de um final que pintasse a protagonista como algo além de uma herdeira mimada mantendo a tradição da família.
Plec e Mackenzie, por sorte, não demonstram ter nem sombra dessa mesma necessidade de validação. A sua Mentirosos, portanto, tem mais espaço para ser televisão cartão-postal sem culpa, com uma montagem ágil e tomadas luxuosas dos campos verdejantes e montes pedregosos de Beechwood, a ilha privada dos Sinclair; e também mais espaço para ser um compilado instigante de fofocas privilegiadas, que no campo adulto se delicia em performances camp como a de Candice King (excelente na construção de uma Bess compacta e chiliquenta), e deixa à deriva atores até melhores, mas mais dados a sutileza, como Fitzgerald. É difícil ficar bravo com a série por isso, no entanto, porque os adultos nunca foram os protagonistas aqui.
Mentirosos, olha só, é sobre os Mentirosos - apelido carinhoso recebido por Cady e Gat junto com os primos Johnny (Joseph Zada, em desempenho explosivo que o aponta na direção do estrelato) e Mirren (Esther McGregor) -, e cada um dos quatro é construído sob medida para ganhar o coração do público jovem. Como bônus, é claro, nenhum deles acaba essa história perpetuando as toxicidades de seus pais, e o roteiro nunca nos pede para sentir pena deles. Menos realista, talvez, mas Plec e Mackenzie sabem que nos aproximamos de algo como Mentirosos procurando catarse, muito antes de procurarmos realismo. Derrubar impérios, quebrar ciclos, e a coisa toda - esse papo de adolescente.
*Mentirosos estreia no Prime Video na quarta-feira (18), com a temporada completa.
Fonte: Omelete